O letramento para a diversidade sexual um imperativo na pratica psicologica
Este artigo apresenta um relato de experiência que problematiza as implicações da falta de letramento para a diversidade sexual por parte de profissionais da Psicologia.

Ma. Alinne Grazielle Neves Costa 1
RESUMO:
Este artigo apresenta um relato de experiência que problematiza as implicações da falta de letramento para a diversidade sexual por parte de profissionais da Psicologia. A vivência negativa em processos terapêuticos revelou não apenas a ausência de preparo técnico e epistemológico, mas também a reprodução de discursos preconceituosos, resultando em impactos emocionais significativos para a paciente. A partir dessa experiência, discute-se a urgência de uma formação profissional que contemple as especificidades da população LGBTQIAPN+, garantindo um atendimento humanizado e eticamente comprometido. Dessa forma, o texto enfatiza a necessidade de uma prática clínica que não apenas evite a reprodução de violências simbólicas, mas que também promova o acolhimento genuíno e sensível às questões de diversidade. Com base em uma abordagem teórico-crítica, o artigo revisita conceitos fundamentais da Psicologia e dos Estudos de Gênero e Sexualidade, abordando os desafios enfrentados por essa população no acesso a serviços de saúde mental. Para tanto, recorre-se às contribuições de teóricas como Judith Butler, Guacira Louro e Michel Foucault, problematizando os mecanismos normativos que sustentam práticas excludentes e reforçando a necessidade de um letramento efetivo para a diversidade sexual no campo psicológico.
Palavras - Chaves: Letramento; Diversidade sexual; Gênero; Psicologia
INTRODUÇÃO
[...] Através de processos culturais, definimos o que é – ou não – natural; Produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos históricas. Os corpos ganham sentidos socialmente. A inscrição dos gêneros – feminino ou masculino - no corpo é feita, sempre no contexto de uma determinada cultura, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade – das formas de expressar os desejos e prazeres – também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade [...] (LOURO, 1999, p. 11-12)
A partir da perspectiva de Guacira Louro (1999), compreende-se que a sexualidade e as identidades de gênero não são categorias fixas ou naturais, mas construções sociais dinâmicas. Essa compreensão evidencia a importância fundamental do letramento em diversidade sexual na formação e na prática da Psicologia. É imprescindível que psicólogos e psicólogas reconheçam que as normas de gênero e sexualidade são historicamente construídas e influenciadas por relações de poder. A ausência de formação ou letramento adequado sobre essa temática pode inadvertidamente reforçar padrões normativos excludentes, invisibilizando pessoas LGBTQIAPN+2 e comprometendo o acolhimento de suas diversas subjetividades. Prado e Machado (2008, p. 7) corroboram essa perspectiva ao afirmarem que a sexualidade não se desenvolve à margem da história, mas sim na “troca reinterpretativa de significados e interações sociais e institucionais que criam posições sociais e, consequentemente, posições identitárias e políticas”. Dessa forma, não é possível conceber a sexualidade como algo pré-discursivo, pré-histórico ou pré-cultural (BUTLER, 2003). O próprio conceito de sexualidade, assim como os de identidade de gênero e orientação sexual, é construído em um determinado contexto sociocultural, frequentemente operando dentro de uma lógica binária e hierarquizante. Nesse sentido, Foucault (1988) argumenta que a sexualidade constitui um dispositivo histórico de poder, ou seja, uma invenção social moldada ao longo da história. A cultura, por sua vez, é o espaço onde identidades sociais são definidas, incluindo não apenas aquelas relacionadas à sexualidade, mas também à classe, raça e nacionalidade. Assim, os sujeitos não podem ser reduzidos apenas à sua sexualidade, pois são membros de uma sociedade historicamente constituída e permeada por dinâmicas de poder e exclusão. Dessa forma, tanto a sexualidade quanto a identidade de gênero e a orientação sexual configuram dimensões da experiência social, atravessadas por múltiplas questões. Através dessas dimensões, um conjunto complexo de desejos, crenças e valores é articulado, contribuindo para a construção do que entendemos como identidade. Compreendidos esses conceitos, a Psicologia assume um papel central na promoção da saúde mental e do bem-estar de indivíduos pertencentes à comunidade LGBTQIAPN+. No entanto, ainda são frequentes os relatos de experiências negativas vivenciadas por essa população em contextos terapêuticos, muitas vezes devido à falta de formação adequada de profissionais para lidar com questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero. Esse cenário evidencia a necessidade urgente de um letramento específico sobre o tema, garantindo um atendimento mais qualificado, ético e humanizado. A insuficiência de preparo técnico e epistemológico por parte de muitos profissionais compromete o acolhimento da diversidade sexual nas práticas terapêuticas. Esse despreparo pode configurar-se como mais uma forma de violência vivenciada pela comunidade LGBTQIAPN+ dentro do consultório, perpetuando um ambiente hostil e excludente. A ausência de um atendimento sensível e qualificado pode inviabilizar a jornada de desenvolvimento, autoconhecimento e empoderamento desses indivíduos, o que se torna ainda mais doloroso em uma sociedade estruturalmente lesbofóbica, homofóbica e transfóbica.
QUANDO A TERAPIA FERE: A IMPORTÂNCIA DO LETRAMENTO PARA A DIVERSIDADE SEXUAL
Minha trajetória como mulher lésbica, professora e pesquisadora na área de gênero tem sido marcada por desafios significativos, especialmente no âmbito da saúde mental. A experiência em consultórios psicológicos revelou, de maneira contundente, como a falta de preparo e letramento em diversidade sexual pode comprometer o acolhimento e o bem-estar de pessoas LGBTQIAPN+. Caso não tivesse plena consciência da importância da terapia para o desenvolvimento humano e a promoção da saúde mental, poderia ter desistido do processo terapêutico, somando-me àqueles que, devido a experiências negativas, desacreditam da efetividade da psicoterapia. Em diversas ocasiões, fui questionada por profissionais sobre a autenticidade de minha orientação sexual, sob a justificativa de que eu não havia tido uma experiência heterossexual. Essa abordagem, alicerçada em concepções normativas e heterociscentradas, ignora a autodeterminação e a vivência subjetiva do indivíduo, desconsiderando que a orientação sexual não se define exclusivamente pela experiência sexual, mas sim por aspectos afetivos, identitários e de desejo (BUTLER, 2003). Além disso, ao compartilhar o sofrimento decorrente da ausência de acolhimento materno, fui frequentemente confrontada com discursos que enfatizavam a necessidade de honrar e compreender minha mãe, ainda que essa relação estivesse marcada por rejeição e violência psicológica. Mesmo ao relatar episódios em que minha mãe afirmava que preferia me ver morta a aceitar minha identidade e orientação sexual, muitas terapeutas priorizavam a dor do outro em detrimento da minha própria dor, reproduzindo discursos moralizantes e religiosos. A experiência mais recente foi particularmente marcante: durante uma sessão, presenciei meu terapeuta ridicularizando uma figura negra e ironizando as siglas que compõem a comunidade LGBTQIAPN+. A sensação de incompreensão, inadequação e ridicularização voltou a me atravessar, trazendo à tona a dor de ter minha existência e representatividade ultrajadas justamente por um profissional em quem depositava confiança. Tal vivência evidencia um problema estrutural: a formação de psicólogos e psicólogas ainda não contempla, de maneira sistemática e obrigatória, o letramento em diversidade sexual e de gênero. Isso resulta na perpetuação de práticas que reforçam discriminações e violências simbólicas, dificultando o acesso da população LGBTQIAPN+ a um atendimento qualificado e humanizado. Infelizmente, relatos semelhantes são comuns dentro da comunidade LGBTQIAPN+, o que evidencia a necessidade urgente de reformulações curriculares na formação em Psicologia. Estudos apontam que a ausência de um componente curricular obrigatório voltado para questões de diversidade sexual e de gênero compromete a atuação ética dos profissionais e contribui para a marginalização de sujeitos dissidentes da norma heterocisgênera (LOURO, 1999). O que se observa atualmente são iniciativas isoladas, promovidas por grupos e indivíduos que reconhecem a necessidade de uma clínica terapêutica mais inclusiva e humanizada, mas que acabam sendo tratadas como um diferencial de mercado, quando deveriam ser parte essencial da formação profissional. Diante desse cenário, torna-se imperativo que a Psicologia assuma o compromisso de formar profissionais preparados para acolher a diversidade em suas múltiplas expressões. A implementação de um ensino que contemple a interseccionalidade das opressões e os desafios enfrentados por grupos historicamente marginalizados não deve ser encarada como um avanço opcional, mas como um requisito ético e necessário para garantir um atendimento digno e respeitoso a todas as pessoas. Assim, o letramento para a diversidade sexual exige, portanto, uma postura ativa na desconstrução da heteronormatividade. Como aponta Guacira Louro (1997), a heteronormatividade não é apenas uma preferência individual, mas um sistema que estrutura as relações sociais, definindo o que é considerado "normal" e "desviante". Na Psicologia, a reprodução acrítica desse sistema pode levar à perpetuação de violências institucionais, como a patologização de identidades não heteronormativas e a invisibilização de experiências LGBTQIAPN+. Nesse sentido, o letramento implica em questionar as próprias crenças e preconceitos, reconhecendo como a heteronormatividade opera nas práticas profissionais e buscando alternativas que promovam a equidade e o respeito à diversidade. Autores como Roger Raupp Rios (2007) e Tatiana Lionço (2008) discutem a necessidade de um entendimento mais amplo da sexualidade e das identidades de gênero na prática psicológica, argumentando que o terapeuta deve ser capaz de reconhecer e desconstruir preconceitos internalizados. Além disso, Carl Rogers (1977), em sua teoria centrada na pessoa, ressalta a importância de uma postura empática e não julgadora, destacando que a falta dessas qualidades pode comprometer gravemente o desenvolvimento terapêutico e o bem-estar do paciente. Ademais, a literatura dos estudos em Psicologia reforça que, para que o psicólogo seja efetivo no acompanhamento de pessoas com vivências relacionadas à diversidade de gênero e sexualidade, é imprescindível que possua letramento específico nessas áreas. Isso envolve não apenas o conhecimento teórico, mas também a prática de atitudes de acolhimento, escuta empática e respeito à subjetividade dos indivíduos. O Conselho Federal de Psicologia (CFP), em suas resoluções, também enfatiza a necessidade de que os profissionais atuem de maneira ética e baseada em evidências científicas, sem discriminar ou estigmatizar pacientes por questões relacionadas à orientação sexual ou identidade de gênero. Assim, o presente relato serve como um ponto de partida para uma reflexão crítica sobre as práticas vigentes na Psicologia, propondo que os psicólogos reavaliem suas posturas e práticas clínicas diante de temas sensíveis e cada vez mais frequentes em consultório sem que haja violações a dignidade humana dos pacientes. A experiência aqui relatada reforça a urgência de que os psicólogos, profissionais e estudantes da área repensem suas práticas e busquem uma atuação mais inclusiva e respeitosa a dignidade humana de todos e todas. Nesse sentido, a urgência do letramento para a diversidade sexual como um imperativo as práticas psicológicas pois passa por compreender os limites impostos pelas normas de gênero e sua influência sobre os processos de subjetivação, conforme problematizado por Judith Butler (2003). As normas de gênero, ao definirem o que é ser "homem" ou "mulher", restringem as possibilidades de expressão e vivência da identidade, gerando sofrimento e exclusão para aqueles que não se encaixam nos padrões binários. O letramento, nesse contexto, envolve o reconhecimento da potência da diversidade e o desafio às normas que aprisionam os sujeitos em identidades fixas e homogêneas. Trata-se de abrir espaço para a multiplicidade de existências, acolhendo as diferentes formas de ser e estar no mundo, e promovendo a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
CONCLUSÃO
A Psicologia, em sua essência como campo de conhecimento e prática profissional, deve assumir um compromisso ético inabalável com a equidade e o respeito às diferenças. O letramento para a diversidade sexual emerge como uma ferramenta indispensável para assegurar que o atendimento psicológico se configure como um espaço genuíno de acolhimento, e não como um palco de reprodução de violências simbólicas. Ao desvendar as barreiras existentes e propor estratégias de aprimoramento, este artigo almeja contribuir para a construção de uma prática psicológica mais humanizada e inclusiva. A superação desses desafios exige uma transformação profunda nas formações acadêmicas e nas práticas clínicas. Entre as ações cruciais, destacam-se: a incorporação de conteúdos sobre diversidade sexual nos currículos acadêmicos, a capacitação contínua de profissionais por meio de cursos e seminários especializados, a promoção de espaços seguros de escuta e acolhimento para pacientes LGBTQIAPN+ e a criação de abordagens terapêuticas que considerem os desafios estruturais enfrentados pela comunidade. Acredito que a mudança é possível e necessária, e que a Psicologia tem um papel fundamental na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Ao abraçar o letramento para a diversidade sexual, os profissionais da área podem se tornar agentes de transformação, promovendo o bem-estar e a saúde mental de todos, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Assim, o letramento para a diversidade sexual não é apenas uma questão de atualização profissional, mas um imperativo ético. Ao reconhecer a diversidade como um valor fundamental, a Psicologia se fortalece como um campo de saber e prática comprometido com a dignidade humana de todas, todos e todes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMORIM, J. S. Psicologia e diversidade sexual: desafios e possibilidades de acolhimento. Revista Brasileira de Psicologia, 2019.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira, 2003. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A vontade de saber. Paz e Terra, 1988. LIONÇO, T. (2008). Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde soc, 17(2), 11-21.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: Uma Perspectiva Pós-Estruturalista. Vozes, 1997.
PRADO, M.A.M; MACHADO, F.V. Preconceitos contra homossexualidades: A hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008.
RIOS, R. R. (2007). O conceito de homofobia na perspectiva dos direitos humanos e no contexto dos estudos sobre preconceito e discriminação. Rompendo o silêncio: homofobia e heterossexismo na sociedade contemporânea. Porto Alegre, Nuances, 27-48.